Piedade

Por R. 0 comentários

 

18 de setembro, 20h

Colégio Visconde de Porto Seguro - Unidade II

Entrada franca

Camisa de Força

Por R. 1 comentários

Não consigo chorar. Tem-me surgido o problema desde considerável tempo. É certo que não me daria conta das circunstâncias não fosse o desembaraço de duas noites que se passaram. Uma em que a raiva acometeu e eriçou os pelos das minhas costas, outra em que o desacerto entre aquilo que sou, o que acham que devo ser e o que porventura serei desaguou em imensurável desespero – o qual, entretanto, não se arriscou a ir além da pressão dos maxilares, colados um ao outro na esperança de substituírem o afago de uma gota que escorre pelas bochechas, alcança o queixo em um golpe de agilidade e dá seu derradeiro salto em direção a lugar nenhum, rumo ao infinito da queda livre.

A tarefa de uma lágrima não é das mais fáceis, tampouco das muito agradáveis. Espremer-se entre a mente e o corpo é um fardo que só a elas é possível. Deus é grande demais e não cabe no homem, pois ver-se em reflexos disformes é que revela a acidez da real imagem e semelhança. Já a alma é instável em excesso e constantemente violenta. São necessárias quatro paredes acolchoadas, um casulo branco apertadíssimo e talvez uma mordaça impiedosa para controlar a alma, mas jamais o fariam um par de olhos chorosos. Diz-se que as visitas às almas são feitas sempre aos domingos, ao cair da noite. Trajes adequados são imprescindíveis, assim como conduta apropriada e palavras-chave para que a portinhola do quarto acolchoado seja aberta com segurança, sem excessos. Sempre sem excessos, sempre. Depois de aberta a portinhola, o diálogo é simples: o visitante diz pouco, o visitado nada. Sobram na conversa algumas poucas cerimônias, outras batas esvoaçantes e a parede acolchoada, soberana, casada com o casulo branco.

Mas não consigo chorar. Um pranto que seja, um “ai” mais úmido, um nó na garganta. Nada. Somado ao desconforto de não poder gerar lágrimas, perturba-me um fato óbvio decorrente da mesma desgraça: desconheço a causa do mal por completo. Cogitei problemas no canal lacrimal – pois bem se sabe hoje em dia que a saúde de um homem é acometida pelos males mais surpreendentes. Mas anulei rapidamente tal possibilidade. As baforadas urbanas me fazem mal aos olhos e constantemente lacrimejo nas calçadas. Lacrimejo, não choro.

Sinto a falta do choro convulso, que me faça doer os músculos do abdômen, deforme sem pudores meu rosto, me roube o ar e a claridade na vista e faça-me subsistir somente no salgar dos lábios trêmulos tentando em vão calar seus soluços epilépticos. Sinto muitas faltas. Sinto a falta de uma longa sucessão de emoções arrebatadoras, de aventuras previstas para um futuro próximo, de certezas fecundas e daquele caminhar fulminante, do pescoço equilibrado com a posição da coluna, encerrando um êxtase de certezas nas inspirações extensas e pausadas das narinas, em um carnaval de certezas, uma orgia de certezas. Sinto falta de mim, céus!

Foi assim que me tomou a ideia de tocar os olhos. A sensibilidade ocular é bastante frágil para romper a barragem lacrimal ao toque rude da realidade na vista. Usei o indicador esquerdo, tomando o devido cuidado de afastar as pálpebras do olho direito com os dedos indicador e polegar de mesmo lado. Assisti ao experimento no espelho. Aproximei a extremidade do dedo à retina, estiquei os tendões necessários, fixei o olhar na mancha bege. Imediatamente senti arder o único olho provocado, as pálpebras se debatiam para proteger seu rei, meus dedos lutavam contra a guarda real. Girava o olhar na órbita quando senti as forças das sentinelas oculares pesarem sobre minha vontade. O olho se fechou violentamente, cerrei seu irmão gêmeo do outro lado da face. Abri-os novamente, chorava. Chorava uma única lágrima solitária, artificial, muda. E somente de um lado eu chorava. Meu outro olho acompanhava friamente o espetáculo desgraçado de seu gêmeo, sem pestanejar ou esboçar intenção de piscar. Derramei a lágrima que me competia derramar, esperei que chegasse até o queixo e saltasse em direção a lugar nenhum. Dei-lhe o glamour que daria a qualquer lágrima que viesse me abençoar com sua irrevogável presença. A gota não esbarrou nos lábios, seguiu direto para o despenhadeiro que a aguardava. Sacolejou um pouco, esbarrou no pulso que agora descansava junto ao abdômen e desfaleceu no escandaloso ponto final de todas as quedas, o solo. Olhei-me, metade do rosto marcado pela nesga umedecida da pele, metade ressequido pelo rancor e asco de expor às vistas a tortura da realidade.

Pisquei três vezes.

Exatamente três, pois sei

que a quarta laçada das pálpebras

não foi somente um piscar de olhos.

Foi uma enchente, uma inundação de vazios

preenchidos pelo mel do homem,

pelo fel dos deuses.

Abri os lábios, engoli o sal, fechei os olhos.

Poesia concreta de tuas esquinas

Por R. 4 comentários

Amou daquela vez como se fosse a última. Beijou sua mulher como se fosse a última.

Fincou suas forjadas pupilas no ferro do metrô. O ar agitava-se abobalhado ao redor de suas orelhas, seus dedos murchavam em contato com as partículas de cimento, seu bigode projetava um ninho futurista no céu da boca e seus lábios encerravam uma procissão fúnebre cuspindo vapor. E por que não dizer que alguma coisa acontecia no seu coração? Somente ali, depois de sair do enfurnado buraco metropolitano e cruzado a Ipiranga e a avenida São João. Pois quando chegara ali nada entendia da dura poesia concreta de suas esquinas. E sim, alguma coisa acontecia em seu coração. Seu rosto gotejava suor com o gosto dela e o Sol destacava adesivos de amor em seu peito. Não lhe ocorrera que seu bolso furava e não parou sua caminhada quando ouviu o tintilar de uma moeda de cinqüenta centavos flertando com a pedra bege cravada na calçada. Ali, na Terra, jogavam canastra. Uns dias choviam, outros dias fazendo Sol. Mas a coisa ali estava definitivamente preta - tão forte o eco das dentaduras e as mordidas das garotas da praça da República, dançando ragtime em telhados umedecidos pelas lágrimas dos poetas exaustos pendurados no teatro municipal, notas nuas de saxofone, transformistas rebolando nas curvas toscas das alamedas, executivos hipnóticos sentados em suas malas pretas seladas por ambição e esperança de um dia alçar a vida – enquanto passam, os ternos rasgam e as prostituas entoavam canções a Afrodite, padres sonham com a carne do homem e benzem o sangue de Cristo, chefes vomitam auxiliares e secretárias vomitam verbos. Verbos sem nome nem casa. Limpou seus pés no capacho esgrouviado à porta do arranha-céu, ao lado da faxineira vesga. Parados à faixa, ambos os lados processavam a meada ociosa que rodopiava nas maçanetas prateadas que cruzavam a avenida: lésbicas esquerdistas, grávidas solteiras, estudantes sulfurosos, jornalistas comendo o tempo em suas cornijas, mendigos ovacionados, meninas lindas, corações em carrossel, pálpebras de Narciso. Botas tropeçam no céu como bêbadas. Placas manifestavam o amor pelo ódio ao mundo. (Inconsciente de massas.) A massa de pão acima da cabeça do cozinheiro e um tango no terraço. Um, dois, três, quatro...Cinco, seis, sete, oito. Sentou pra descansar como se fosse um príncipe. Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo. E tropeçou no céu como se ouvisse música. A gente corria sem rumo na rua do meio. O meio parou na sombra do farol vermelho (verde), amarelo (vermelho), verde (amarelo). Morreu na contramão atrapalhando o sábado. Fincou seus dedos gordos na boca e rasgou a pele. Pariu um demônio boêmio no vão do museu, comprou um pôster de Hollywood e gorgolejou a vontade de beijar-se. Olhou pra construção no lado oposto. O café queimava seu glóbulo ocular e lábios beijavam as paredes de sua mente. Perdeu-se em seus guindastes de medo. Amou daquela vez como se fosse a última. No meio do caminho tinha uma pedra. Por lhe deixar respirar, por lhe deixar existir, atravessou a rua com seu passo tímido.

Nove Horas

Por R. 1 comentários

"Sim. Talvez depois das nove.", disse Alice Prado golpeando o antigo tapete ao sol. Pois para ele tudo aquilo soaria como um sorvo de liberdade, uma dádiva fraterna por ter se comportado como deveria durante uma noite em que preferiria ter rolado seu cubos de madeira a passado minutos que fossem na mesa de jantar. E quão alegre, quão rejuvenescedora era a nuvem de poeira que flutuava aos olhos de Gustavo, gorda como a confeiteira debruçada sobre o balcão de fórmica da Spiegel's. Seguiu triunfante pela escada ao lado dos lírios cogitando quanto tempo decorreria até que os ponteiros soturnos no andar de cima marcassem nove horas. Seria duas horas, certo? O almoço saíra tarde naquela sexta-feira pois Lúcia não se lembrara de comprar alcachofras. Principalmente porque sua mãe amava alcachofras e a mercearia estaria fechada quando a cozinheira chegasse arfante à porta, segurando seu avental xadrez e invejando a sorte que Alice tinha em ter bom trato com crianças - e não com alimentos. O almoço saíra tarde e Gustavo Tavares esperou até que seu pai irrompesse da porta dos fundos, que lhe trouxesse um punhado de balas e o abraçasse no hall para que todos vissem, para que Lúcia se assustasse com a gritaria e Alice batesse novamente no tapete, para que o cão ladrasse junto do senhor esguio que caminhava sob o sol de Abril e para que as folhas verdejantes de seu quintal se empurrassem a fim de ver o espetáculo que era presenciar Gustavo e o senhor Tavares juntos. Não somos mais os mesmos, pensou ao ver a negra Lúcia levando casacos beges para o quarto de seus pais. Naquele momento não lhe importava quão jovem ele era, nem a riqueza de sua família ou a perversidade do vento que arrepiava-lhe as costas das mãos - eram duas horas, não eram? - ou se Lúcia contara errado o número de roupas de frio necessárias para uma viagem de cinco dias. Que saudades tinha de San Humbolt, das pedras tremendo sob o relinchar dos motores corriqueiros, dos vendedores de ouro na Calçada Larga, das velhas acostando-se no umbral da igreja, das garotas fornidas volúveis aos rapazes, das viúvas cosendo ao lado do canteiro de cravos, das livrarias abarrotadas na rua Francisco Vellajo; pois era isso que ele amava, o céu de Abril, as nuvens de poeira, as alcachofras, as nove horas, ele, ali, sucessivamente aquele vislumbre de todos os instantes, seus detalhes. Gustavo alcançou a porta do quarto e girou a maçaneta preateada. Como era vasto o bom gosto de sua mãe! Indiferente às vistas mundanas, que bela mulher segurava-lhe no colo enquanto traçava planos para a semana seguinte. Futilidades patéticas, tiranas para o senhor Tavares em sua ocupação eterna com os negócios. Futilidades, diria ele se visse a mãe de Gustavo com um coque alto preso por um lápis vermelho-chumbo, riscando o que viria a ser a estufa ao lado das videiras. Eram duas e meia e Gustavo podia ver Alice Prado golpeando o tapete de seu quarto enquanto seus pés descalços tocavam as tábuas frias que recobriam o chão do seu aposento. O vento levantava as nuvens de poeira e as dissipava lentamente em frente às árvores beges. Tão triste, tão infinitamente fácil ver Alice sufocada no trabalho diário. Os ponteiros marcariam nove horas e a senhorita Prado não estaria com Gustavo - já seriam três horas? O garoto repousou as pernas na potrona verde-musgo e estirou os braços ao longo do corpo magro. Jazendo na cama, imerso no aroma amargo da madeira, fechou os olhos. Nove horas - se sequer logravam bater as três...

À Alma

Por R. 2 comentários

Querida Alma,

escrevo-te de onde não sei definir ao certo a velocidade com que os ponteiros correm, nem a cor do sangue morno que banha meu rosto quando os ventos acariciam minhas pálpebras - quem dirá o gosto de um beijo submerso na escória dos lábios tensionados pela audácia. Não vou dizer-te que sinto tua falta, pois seria infeliz enrustindo-me em lamentações lógicas enquanto a razão nem mesmo se arrisca a me fincar a seus portos altivos. Sinto - e sinto em cada vasto gesto, que sua presença (ainda que ausente) nunca me foi tão forte, jorrando por todos os poros da fronte que encara seu destino com os olhos cerrados, entitulando o romance que se espreguiça sobre sua tragédia. Alma, escrevo-te indagando seu escondeirijo, procurando seu paradeiro em meio à balbúrdia interminável dos meus sentimentos. Em vão, vasculhei o promíscuo seio do desejo, o amargo timbre da cevada e a ecoante voz do artista fazendo-se virgem nas notas doces da guitarra. Em vão, alma, procuro-te e perco-te.

Seu R.

What comes after today

Por R. 0 comentários

If I were thinking clearly, I would tell you that I wrestle alone in the dark, in the deep dark, and that only I can know. Only I can understand my own condition.

(This is my right; it is the right of every human being.)

Retrato

Por R. 0 comentários

Os cabelos loiros lhe cobriam o olhar ébrio que lançava em direção ao vácuo à sua frente (ou em seu interior). O peito dele, coberto pelo suéter felpudo azul, sustentava a cabeça frágil dela. Estavam emudecidos há algum tempo. Ela, levemente alcoolizada, roçava displicentemente seu rosto no suéter, tamborilando os dedos pálidos sobre a barriga dele. Ele não vai se lembrar disso, insistia. Ele iria se lembrar daquilo. Até porque o aroma agridoce do hálito dela penetraria seu corpo por completo, o faria arrepiar a nuca e continuar fingindo despudoradamente sua suposta embriaguez. As bolsas continuavam prensadas por baixo dos corpos do casal, atirados ao sofá encouraçado ao lado do aparador antigo da casa. Um retrato de um senhor altivo pendia na parede oposta, vigiando o espetáculo sensual que se densenrolava. Ela também iria se lembrar daquilo. Todos iriam. Inclusive o grupo de literários que se debruçava na escadaria de mármore ao lado, os bêbados que se abraçavam cantarolando tristes canções na frente do vitral, o casal de que se beijava no pufe negro, o negro que servia as pizzas de alcachofra, a debutante que socializava com seus convidados e o homem que sentava ao lado dos dois, que destrinchava a volúpia que ele nunca tivera a oportunidade de provar com ela, a própria. A atriz dos sonhos flácidos que pendiam em suas noites insones, passadas aos olhos arregalados na escuridão dos beijos irreais farfalhando no chão do quarto, dos abraços possessivos que jaziam consigo aonde quer que fosse, junto da perspectiva tórrida e viciosa que perseguia sua alma: tê-la enfim por completo. Ele ainda vestia o suéter azul e ela ainda tamborilava a palidez de sua mão no peito dele. E o homem ao lado, junto do arrogante velho pendente na parede, observava a encenação dos bastidores. Era sempre onde ele estivera: nos bastidores. Preparando sua musa para mergulhar nos braços de outros, em milhares de olhares sedentos por sua beleza satânica; para entrar em cena, estarrecendo o mais insensível dos homens em seus gestos lânguidos, ocultando a ternura de seus cabelos na tez fria que emanava aromas mais nobres, tremendamente mais excitantes que o hálito agridoce perverso que ela insistira em portar naquela noite. E ele, sentado nos bastidores da peça à qual sempre quisera participar, assistia à sua criação bailar ao som de mil suspiros profanos, inssosos e inadequados à grandeza de seu ser. E então, como faz o condenado ao ver-se subindo ao cadafalso, ele vislumbrava os olhos infinitos dela fecharem-se em sincronia com o contato abjeto de sua boca com a de outro. Ele ainda usava o suéter azul, e ela não tamborilava mais seus dedos. Sua mão agora acariciava a nuca dele, enquanto a sintonia perversa daqueles lábios valsando obrigava o homem ao lado a cruzar a sala, passar pelo retrato enegrecido, pelo grupo, pelo ajuntamento, pelo casal, pelo negro, pela debutante e finalmente chegar ao gramado, onde sentiu o solo tocar seus joelhos e umedecer sua calça com a orvalhada grama e as lágrimas convulsas que escorriam por sua fronte.